terça-feira, 12 de julho de 2011

Copacabana no frio


Nesses dias de frio, em que nos esquecemos do intenso calor que nos castigou em janeiro, os casacos sairam do armário e Copacabana perde sua identidade. As mulheres, habitualmente quase despidas, desfilam em toalete paulista.

As velhinhas do bairro demonstram maior padecimento, como se o clima acentuasse as rugas do tempo vivido. No calçadão, os andarilhos usam mangas compridas e marcham em rítmo mais acelerado.

Gotejando suor, com os olhos esbugalhados, Marquinhos, o maluco da vizinhança, atravessou hoje quase correndo a pequena praça Manuel Campos da Paz. Vestia um terno de linho branco, todo amassado mas limpo. Usava também uma gravata vermelha fina e suja. O frio não lhe dizia respeito.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Um cão chamado Leitão


Ele trouxe afeto e companhia a quem precisava. Pouco pedia em troca e nos olhava demoradamente. Parecia procurar saber em que pensávamos, o que nos preocupava ou entristecia.

Durante anos fizemos companhia um ao outro. Sabíamos nos entender e nos comunicar um com o outro pelo simples olhar e nossos momentos foram divertidos e bons. Com as atribulações da vida, sofreu grande solidão quando foi praticamente abandonado nas montanhas. Fernanda o acolheu e amou e agora é quem mais sofre com a sua morte.

Nos últimos anos, teve vida sossegada e feliz mas a velhice aproximou-se com seus estragos. Sabemos que a morte só existe porque existe a vida mas não nos acostumamos à resignação.Vale homenageá-lo com a lembrança de um amigo que nos ensinou como uma simples presença pode nos fazer felizes.

sábado, 2 de julho de 2011

O herói


Os gregos da antiguidade diziam que nada se deve temer, pois os heróis já enfrentaram todos os perigos antes de nós. O mito do herói sempre esteve presente em todas as civilizações e de Teseu a Luke Skywalker ele enfrentou todas as vicissitudes.

Não existem várias histórias diferentes vividas pelos heróis, mas apenas a única história de um só herói que se repete e nas quais o narrador coloca muito de si mesmo.

Joseph Campbell estudou toda a mitologia do herói para nos dizer que a única história, mil vezes repetida, é a da personagem que se lança na aventura, enfrenta inimigos, experimenta enormes provações e volta para casa depois de transcender a existência comum. A história é sempre a mesma. O que muda é a maneira de contar.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O cão



O cão pertence a um mendigo mas costuma andar sozinho pelas ruas de Copacabana. Encontra-se com o dono já tarde da noite, quando ambos se abrigam embaixo da marquise de um edifício comercial da Barata Ribeiro.

O mendigo tem uma carroça carregada de sacos, embalagens usadas, panos velhos, latas, caixas vazias. Ele e o cão vivem segundo um acordo em que um protege o outro. O cão precisa de um dono e o mendigo precisa do cão para dormir tranquilo debaixo da marquise.

De aparência bem tratada, o pelo amarelado e brilhante, o cão se afasta durante o dia. Anda pela calçada com a determinação de quem vai a algum lugar. Desvia-se dos transeuntes, espera abrir o sinal para pedestres e só então atravessa a rua.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Corporações


À maneira dos cães, os homens possuem o instinto da matilha e se reunem para agir, sobreviver e lutar contra as ameaças. Desde as origens se juntou em tribos e as corporações são hoje a melhor expressão desse primitivo instinto.

As empresas procuram unir suas equipes sob o estímulo emocional dos sacerdotes da área de Recursos Humanos. No Japão, algumas companhias fazem seus empregados cantarem o hino da fábrica antes do trabalho e nos EUA as convenções anuais se assemelham a um culto religioso.

Como numa guerra de matilhas, as corporações, cada vez maiores, lançam seus produtos contra os concorrentes e bradam gritos de guerra na conquista de consumidores. Arreganham os dentes e lutam pela vitória.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Inverno


Numa visita que fez ao Rio no mês de junho, uma jornalista americana disse que a cidade hiberna para despertar no verão. As ruas ficam como que vazias durante os meses de inverno e o carioca veste casacos de lã quando bate menos de 20 graus. No hemisfério Norte, esta é uma marca de calor.

Desaparecem os engarrafamentos e a viagem de Copacabana ao centro dura menos de quinze minutos. O mar se agiganta em ressacas acompanhadas de chuva. À noite, as ruas vazias lembram antigos fantasmas, a solidão nas grandes metrópoles, abandono e ameaças sombrias.

Em breve chegará setembro num outono de sol ameno e céu muito azul, prenunciando o verão, quando chegam as meninas muito brancas que em dois dias estarão rosadas e começarão a trocar a pele. O Rio vive e regurgita é mesmo no verão e no calor. O inverno o acalma e o faz dormir.

domingo, 5 de junho de 2011

Políticos


Aos cinquenta e três anos de idade, o ator Alec Baldwin olhou para si mesmo, rememorou seu passado profissional e perscrutou o futuro. Concluiu que sua carreira não ia mesmo deslanchar e anunciou que vai entrar na política. Depois do sucesso de Ronald Reagan, que chegou à presidência, a política tem sido uma alternativa para os atores americanos.

Ao analisar o sucesso de outros artistas, Tiririca também percebeu que tinha chances e foi eleito deputado por uma massa de votos que o consagrou. Depois de aparecer num programa de grande audiência na classe média, o professor Jean Wyllys igualou-se aos artistas e se beneficiou da grande votação de Chico Alencar, seu companheiro de partido. Também se elegeu deputado.

Olaf Palmer, ex-Primeiro Ministro da Suécia, disse numa entrevista que, quando jóvem, havia sido um razoável ator e um dedicado boxeador. Mas compreendeu que tinha poucas chances nas duas atividades. Resolveu então tentar a política porque era a única carreira que lhe permitiria fazer uso das duas aptidões.

domingo, 29 de maio de 2011

Luis Sérgio


A notícia da sua morte, ontem, foi um choque como costumam ser os acontecimentos trágicos. Há alguns anos publiquei alguns dos seus fotopoemas em Uma coisa e outra, uma pequena amostra da sua obra, de lirismo envolvente e grande beleza.


Luis Sérgio dos Santos, médico de profissão e poeta na essência da sua alma generosa, foi traído pelo coração. Nos últimos meses, dedicava-se a organizar uma antologia de poetas contemporâneos, com o entusiasmo que era um traço do seu caráter.

Nunca nos conhecemos pessoalmente. O gosto pela literatura e a internet nos aproximaram em um relacionamento cordial. Sua obra permanece, seu trabalho dará frutos. Mas o melhor se perdeu.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Larões de Cemitérios


A conversa derivou para a morte, destino comum de todos os viventes e que levou Miguel de Unamuno a escrever “toda vida ao final é um fracasso”. E daí alguém lembrou a existência dos ladrões de cemitério.

Existem três tipos de roubos que são praticados contra os mortos. O mais comum é o roubo das flores, logo depois do enterro, quando a família e os amigos se retiram. O morto, deixado na solidão absoluta, não precisa de flores e elas ainda estão frescas e custam caro no mercado da morte.

Outro tipo é o roubo do caixão, um ítem de valor deixado para alguém que não precisa de mais nada e que pode ser revendido para acomodar outro morto. E finalmente o assalto ao próprio cadáver para a retirada das próteses dentárias de algum valor. O homem é o lobo do homem, os romanos diziam antigamente.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Arruda


Arruda faz parte do pequeno exército de seguranças de rua com a missão de garantir alguma tranquilidade nos botequins de Copacabana com mesas de calçada. Antes, no colete preto que eles usam como uniforme, estava escrito Segurança mas parece ter havido uma proibição da Secretaria de Segurança e a palavra foi substituida por Apoio.

O trabalho deles consiste em ostentar a vigilância do quarteirão e afastar mendigos e pequenos vendedores que assediam a freguesia. A maioria é de PMs aposentados que fazem uma melhoria de renda. Exibem o rosto fechado e um porte condizente com a importância conferida por um certo poder de polícia.

Não é bem o caso do Arruda, responsável por um quarteirão da Barata Ribeiro. Ele ri o tempo todo, cumprimenta os clientes, ajuda os velhos na travessia da rua e dá jeito de conseguir no botequim alguma comida para um ou outro mendigo. Diz que sabe reconhecer, olho no olho, quem está mentindo e quem passa fome de verdade.

sábado, 7 de maio de 2011

O Relato de Prócula


Uma instigante e nova interpretação da vida de Jesus, descoberta num documento produzido por Prócula, mulher de Poncio Pilatos, é o leit-motiv do último livro de WJ Solha, mas o seu interesse não reside apenas nessa revelação. Um painel amplo de temas entrelaçados conquista o leitor até o desfecho surpreendente, valorizado pelo virtuosismo de um escritor que domina a sua técnica e sabe contar uma história.

Cinéfilo declarado, Solha homenageia uma infinidade de clássicos da história do cinema e escreve também, com este romance, um roteiro quase pronto para o que pode se transformar num belo filme.

O escritor, embora paulista, vive há muitos anos na Paraiba. Com amor e sensibilidade, incorporou a cultura nordestina no que ela tem de criatividade, singularidade e riqueza. O Relato de Prócula prova também, como notou Clemente Rosas numa resenha do livro, que, vivendo longe do circúito sulista de auto-promoção e mais fácil penetração na grande mídia, WJ Solha é menos conhecido do que merece a qualidade da sua obra.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Paris, anos 20


Os anos vinte e os anos sessenta do século passado foram dois períodos que despertaram coisas novas na cabeça das pessoas, mudaram comportamentos e transformaram o mundo. Os sessenta foram marcados pelo movimento hippie, a libertação feminina e o impacto dos baby-boomers. Os anos entre 1920 e 1930 foram, no entanto, mais criativos.

Por esse tempo, atraidos pelo baixo valor do franco e o alto valor do dólar, entre as duas guerras, chegou a Paris uma leva de americanos que se aliou à vanguarda local e juntos mudaram o que veio depois deles na literatura, na música e nas artes. Hemingway, Cocteau, Picasso, Dali, Fitzgerald, Joyce, John dos Passos, Stravinsk, Prokofiev, Tristan Tzara, o surrealismo e o dadaismo, fizeram uma mistura de inteligência e talento verdadeiramente revolucionária.

Sem um tostão no bolso, às vezes tendo de caçar pombos com uma atiradeira nos Jardins de Luxemburgo para garantir o jantar, Hemingway, já velho, no apogeu do sucesso como escritor, recordava aquele tempo quando, como escreveu em Paris é uma festa , era muito pobre mas também muito feliz.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Jota


Entre as centenas de mortos no trânsito das estradas e da cidade e na violência de cada dia, nenhum jornal noticiou a morte de Jota, que vivia na noite. Seu ponto era a esquina de Viveiros de Castro com Prado Junior, bem no meio da área onde a malandragem divide o espaço com os velhos moradores de Copacabana.

Jota foi encontrado debaixo de uma marquise com um tiro disparado à queima-roupa na testa. Ele fazia a vida prestando pequenos serviços às garotas do Barbarella, ia à farmácia e fazia compras nas lojas noturnas da vizinhança. Dizem que também estava à disposição para subir o morro e buscar algum bagulho a pedido delas ou de um cliente.

Gordo, pequeno, andava rebolando e tinha sempre ar de riso. Vestia um paletó cinza menor do que o corpo e calças jeans sem cor e era este seu uniforme. Parado na esquina, gesticulando e falante, puxava conversa e conhecia pelo nome os motoristas de taxi.

terça-feira, 19 de abril de 2011

La Tour d’Argent


Na mesa ao lado, os quatro velhinhos gays discutiam com o garçon e um deles liderava a indignação de todos contra o aumento no preço do prato. Eles costumam almoçar juntos, sem fidelidade a um único local mas estão sempre nos botequins da Barata Ribeiro, nos três blocos e meio entre Paula Freitas e Rodolfo Dantas.

“Reclama do galego”, disse o garçon, com receosa discrição e olhando para a caixa registradora; atrás dela sentava-se o dono do botequim. Mandaram chamá-lo e o mais alto deles, o que se veste com elegância, faz as sobrancelhas e usa uma bengala, procurou saber a razão daquele preço por um magro filé de peixe.

O dono do botequim acentuou o sotaque da Galícia e informou que estava comprando o peixe bem mais caro porque é assim todo ano na época da Páscoa. Um dos velhinhos riu com ironia e disse que por aquele preço nem o coelho da Páscoa. O da bengala, antes de recolher entre eles o dinheiro para pagar a conta, disse com desprezo que um botequim de terceira classe em Copacabana estava cobrando mais caro do que La Tour d’Argent, quando ele morava em Paris.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Ivan


Sua forte compleição atlética trabalhada com halteres pesados e um rosto fechado, com a moldura de um cavanhaque negro, completavam sua figura e o papel de homem mau que gostava de desempenhar. Exibia sua valentia. Quando bêbado, aumentava o volume da voz poderosa e todos se calavam, o bar ficava num silêncio amedrontado que nem parecia um bar.

Vestido de uma sunga de praia, viajava de moto nos fins de semana para Arraial do Cabo e passava a tal velocidade pela blitz da Polícia Rodoviária, em São Pedro da Aldeia, que os policiais não tinham ânimo de persegui-lo.

Gostava de armas. Calou o barulho de uma festa no apartamento de frente com um tiro certeiro no aparelho de som. Tinha medo de baratas e ternura pelos amigos. Na convivência, revelava-se um sentimental que não suportou a solidão. Naquela noite, bebeu uma garrafa de vodka, entrou no mar, nadou até muito depois da arrebentação e ficou lá para sempre.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Segunda-feira


O bairro amanheceu com o trânsito parado nos engarrafamentos. As fábricas de automóveis, produzindo mais de 3 milhões de unidades por ano, despejam esses novos modelos nas ruas. Qualquer dia poderemos despertar e assistir ao nó definitivo. O metrô, depois do fim da baldeação no Estácio, caminha para se igualar ao de Tóquio, onde os passageiros são empurrados com o pé para dentro dos vagões lotados.

Marquinhos em seu delírio tenta organizar o trânsito, cospe no chão e grita com os motoristas palavras que não articula mas que sabemos ser de ódio pelos olhos esbugalhados. As crianças reunidas diante da escola municipal ainda mostram um certo olhar de perplexidade e tristeza.

As previsões do tempo insistiram nos boletins de muita chuva para estes dias, acompanhada de raios e trovões, talvez houvesse enchentes. Mas o sol insiste e contradiz, apareceu em céu claro e as praias continuam cheias. Os turistas ainda estão por aí, de pele avermelhada, as meninas em vestidos leves e sandálias havaianas.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

A transitória glória do mundo

Um dos homens mais ricos do mundo foi um sueco chamado Ivar Kreuger, que teve o monopólio da fabricação e venda de fósforos em práticamente todo o mundo. Em seus escritórios localizados no prédio de número 7, na elegante Place Vendôme, em Paris, comandava várias empresas, entre as quais a poderosa Ericsson, e administrava o monopólio de fósforos negociado com chefes de estado em quase todos os países ocidentais.

Kreuger era também um boa-vida, dotado de grande charme pessoal, amante de belas mulheres que frequentavam sua garçoniere no andar logo acima dos seus escritórios. Era também amante dos bons vinhos, que guardava no subsolo do mesmo prédio. Sua adega despertou inveja até no banqueiro J.P. Morgan, seu rival no mundo dos negócios internacionais.

Como todos os grandes investidores, Ivar Kreuger amava os riscos do poker dos grandes negócios, que enfrentava com reconhecida inteligência financeira e dos quais saía ainda mais rico. Numa dessas jogadas, a fusão da Ericsson com a ITT americana, blefou e deu-se mal. Na manhã do dia 12 de março de 1932, Kreuger comprou uma pistola Browning automática de 9 mm e cem balas. Usou apenas uma delas para matar-se com um tiro no coração.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Animais de estimação


O pequeno poodle, inteiramente molhado, treme sob o chuveiro da mangueira operada pela moça da loja de animais. Sairá com o pelo enxuto, perfumado e aliviado do sofrimento que passou no corte do pelo e na tortura do banho. Sua dona, uma mulher de ar deprimido, aguarda o final do tratamento enquanto passeia pela loja e compra comida para o poodle.

Do lado de fora, enquanto olha para a vitrine, uma mulher negra protesta em voz baixa e diz que Copacabana tem tantos mendigos sujos e famintos enquanto aquele cão recebe tantos cuidados.

Ouço e penso que a miséria dos mendigos do bairro não consola a mulher deprimida que compra comida para o cão. Talvez desperte sua compaixão. Mas a solidão vivida nos pequenos apartamentos explica tanto amor pelos bichos e a existência de tantas lojas especializadas no luxo dos animais de estimação.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Previsão do tempo


Um outono envergonhado veio amenizar o calor do verão mas o sol ainda fornece alegria a quem não dispensa a praia. Os vagões do metrô continuam a despejar os banhistas que vêm do subúrbio para Copacabana pelo caminho mais curto criado pelo acesso direto da Linha 2. O movimento é apenas pouco menor que o do verão e as chuvas anunciadas devem ter estacionado no Rio Grande do Sul, quando não escapam para São Paulo.

Os meteorologistas do nosso Hemisfério dificilmente acertam em seus palpites, que esbarram na inconstãncia do tempo ao Sul do globo terrestre. Enquanto ao Norte as estações do ano são bem definidas e as condições do clima apresentam-se previsíveis e imutáveis, possibilitando saber o tempo que vai fazer com grande antecedência, por aqui o regime de ventos e o caminho das núvens mudam a cada instante.

No Brasil, o único boletim meteorológico em que se podia realmente confiar era o da Rádio Tabajara de João Pessoa, que contemplava todas as hipóteses: “tempo bom com nebulosidades, sujeito a chuvas e trovoadas”.

terça-feira, 22 de março de 2011

Manhã cedo


Os botequins da Barata Ribeiro e os quiosques da praia abrem muito cedo, alguns sequer chegam a fechar. As boates e clubes noturnos atravessam a madrugada. Às primeiras horas, Copacabana mostra seus contrastes. Nos bares das calçadas, alguns tomam o café da manhã e outros bebem cerveja após a noite movida a outros prazeres menos inocentes.

A paisagem humana é diversa. Há os que se preparam para o trabalho no desjejum de café com leite, pão e manteiga. Dividem o bar com os boêmios que vêm da véspera e as moças de programa despejadas na rua com o fechamento das boates e que esticam num último gole antes do sono. De olhos vermelhos, observam os que vão andar ou correr no calçadão.

Eles não se misturam. Uns comem sozinhos, outros bebem cerveja ainda animados e os atletas andam a passos apressados em direção à praia. As velhas senhoras seguem para a primeira missa da manhã e olham desconfiada e silenciosamente na direção dos bares.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Pedra filosofal


Nenhuma profissão dá garantia de enriquecimento tão rápido quanto a política. Em apenas um mandato, alguns políticos começam a dar sinais exteriores de que ascenderam na escala da fortuna e deixaram para trás tempos difíceis. Economistas pobres, advogados pobres, médicos, funcionários, pastores, empresários modestos parecem ter descoberto a pedra filosofal ao fim de apenas quatro anos.

A vocação para a política pode se revelar cedo, na vontade de mudar o mundo e reparar as injustiças da vida. A iniciação na luta política surge então nas disputas estudantis e evolui para a militância partidária. Ou então aparece como oportunidade para funcionários, líderes comunitários, dirigentes sindicais.

Os que pensam na justiça muitas vezes se transformam diante das tentações e das possibilidades de enriquecer. E os que viram na prática política instigantes oportunidades para fazer dinheiro – talvez a maioria – estes já chegam com o conhecimento completo dos infames labirintos.

sábado, 12 de março de 2011

A Língua Geral


A presença portuguesa no Brasil depois do descobrimento não foi suficiente para, espontaneamente, impor no país a hegemonia da língua portuguesa. Até a segunda metade do Século XVIII, predominava no país a Língua Geral, o tupi, que era falada pela grande nação tupinambá. A ponto de o famoso bandeirante Fernão Dias Paes Leme, como tanta gente na época, nunca ter aprendido a falar português.

A Língua Franca, como também era chamada, foi inicialmente usada pelos jesuitas para ajudá-los na catequese. E espalhou-se pelo país com as bandeiras e as entradas pelo interior. O Marquês de Pombal a proibiu e obrigou a colonia a só falar português, mas a Língua Geral deixou remanescentes em inúmeras palavras do vocabulário brasileiro. O sotaque caipira do sul do país, com os rr de língua enrolada, é uma dessas heranças.

Apesar dos esforços dos governos das antigas colonias portuguesas, que tentam manter a unidade lusoparlante, o falar do Brasil afasta-se cada vez mais dos padrões clássicos. Um saloio português e um caipira brasileiro falam línguas diferentes, dificilmente se entenderiam.

terça-feira, 8 de março de 2011

Marlowe


Junto com Dashiell Hammet, Raymond Chandler renovou a literatura policial americana de uma forma que veio a influenciar dezenas de escritores mundo a fora. Eles foram contemporâneos, criaram arquétipos literários e morreram ambos de tanto beber.

Chandler escreveu oito romances em que a personagem, Philip Marlowe, é um detetive particular que tem uma atitude filosófica diante da vida e joga xadrez. Mas do xadrez ele diz que “é a mais elaborada forma de desperdício da inteligência humana, com exceção de uma agência de publicidade”.

No cinema, Marlowe foi interpretado por diferentes atores, entre os quais Humphrey Bogart e Robert Mitchum, que criaram tipos memoráveis. Ele dizia que “o álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico, o segundo é íntimo e o terceiro é rotina. Depois disso, você tira a roupa da garota”.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Pássaros


Os pardais que habitavam Copacabana vieram de Lisboa mas foram quase todos expulsos pelos pombos. Outros pássaros, no entanto, parecem desafiar esses inimigos e frequentam o bairro com alguma desenvoltura. Povoam as árvores da Barata Ribeiro e os jardins das coberturas.

Eles vêm das matas que ainda existem no cocoruto dos morros dos Cabritos, São João, Babilônia, Uribu e do Leme. Ornitólogos consideram que, apesar de todas as condições precárias que existem para a vida nas grandes cidades, o número dos pássaros urbanos vem aumentando. Aqui no bairro, basta prestar atenção. Eles estão por aí.

Sabiás, beija-flores, bem-te-vis, cambacicas, canários, quero-queros, sanhaços, andorinhas, trinca-ferros, rolinhas. Os papagaios passam com seu canto rouco e vôo desajeitado pela manhã e regressam no fim da tarde ao Morro de São João. Um ou outro tucano, de vez em quando, aparece para surpreender. Sem contar as aves marinhas em seu incansável mergulho no mar para sobreviver.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Esquentando os tamborins


A enchente do mês passado na região serrana do Rio de Janeiro saiu das páginas dos jornais e do noticiário da TV. Novas notícias, outros acontecimentos dramáticos tomaram o lugar dos mortos de Friburgo, Teresópolis e Itaipava.

As vítimas foram estimadas em mais de mil e muitas ainda se encontram sob os escombros. O barro que restou no caminho das águas enterram os corpos em sepulturas desajeitadas. Muitos jamais serão encontrados e permanecerão para sempre na conta de pessoas desaparecidas.

O luto pelos mortos passa rápido na memória dos vivos. Restam como trágicas lembranças a leishmaniose, a leptospirose, a hepatite A e a toxoplasmose. Pois agora é tempo de festa, do carnaval que excita as multidões e as leva para as ruas exaltando a vida.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Perversa Paixão


Perversa Paixão (Play Misty for Me), primeiro filme de Clint Eastwood na direção, traz alguns defeitos que se pode debitar a sua inexperiência atrás das câmeras. Mas já tem a marca do seu talento.

É uma história com ingredientes de terror filmada em 1971, depois da sua volta aos Estados Unidos. Ele havia passado alguns anos na Europa estrelando spaghetti westerns e aproveitou para aprender com Sergio Leone alguns truques de narração que veio a desenvolver mais tarde.

Play Misty for Me, no entanto, foi feito sob clara influência de Don Siegel, mestre de filmes B hollywoodianos, grande amigo de Eastwood. Ele chega a fazer neste filme um pequeno papel como ator. Vale a pena ver como um bom filme continua bom quarenta anos depois.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Religiões


A crença nas divindades consola as emoções humanas e dá aos homens a esperança de sobreviverem à morte. Compensa a brevidade da vida e assegura a existência de uma outra dimensão desconhecida. Os sacerdotes, intermediários entre os viventes e as entidades divinas, encarregam-se de descrever o além e de assegurar a eternidade do castigo para os maus e da bonança para os bons.

As religiões desprezam a vida em benefício da morte, quando só então existe a possibilidade de paz para as almas e eterno descanso para o corpo. A doutrina das grandes religiões tenta domar o comportamento humano e dele exigir absoluta fidelidade a seus mandamentos.

O sacrifício é cultuado e promovido, pois só através dele são possíveis as recompensas. A repressão aos instintos vitais é a prova de fidelidade aos preceitos divinos. As religiões têm escravizado os homens em troca da esperança.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Poetas norte-americanos


Num de seus enunciados intuitivos e inteligentes, Borges disse que todos os poetas escrevem o mesmo poema. Um poeta que, hoje, começa a escrever um poema, está dando continuidade ao que outro poeta interrompeu, muitos anos antes. Isto parece ser verdade na poesia norte-americana depois da Segunda Guerra. Uma geração de poetas que escreve sob temas diversos, mas parece escrever o mesmo poema.

O país dos supermercados, das conquistas espaciais e das intermináveis guerras de ocupação talvez não pudesse dar origem senão a poetas como Allen Ginsberg, cujo poema O Uivo (Howl) é o manifesto da sua geração. Gary Snyder, W. S. Merwin, Richard Wilbur, Charles Bukowsky, com novos experimentos de linguagem, franqueza rude e um lirismo chocante, escrevem a mais criativa e contundente poesia contemporãnea.

Eles são continuadores de poetas como Edgar Allan Poe e Walt Whitman, que foram tão diferentes entre si na forma e na temática dos seus poemas mas que expressaram a dupla face e o mesmo assombro na forma de olhar o mundo.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O enigma Rimbaud


Antes de partir para a África, interrompendo uma obra que já o havia consagrado como um dos maiores poetas de língua francesa, Arthur Rimbaud disse je suis venu trop tard dans un monde trop vieux. Cheguei muito tarde num mundo muito velho. Ele expressou o seu tédio pela vida citando outro poeta, Alfred de Musset.

Rimbaud é um dos grandes enigmas da literatura. Foi grande quando ainda era quase um adolescente, brilhou nos círculos literários de Paris da belle-époque e desapareceu de repente. Gabriel Bounoure escreveu um livro, Le silence de Rimbaud, com o resultado de uma pesquisa que fez seguindo os passos do poeta em sua vida na África.

O que teria feito com que ele abandonasse tudo e partisse numa aventura errante, nem sua própria irmã poderia dizer. Com o irmão no leito de morte, Isabelle Rimbaud escreveu à mãe: "Não, não acredito. É quase um ser imaterial e o pensamento foge apesar dos seus esforços. Às vezes pergunta aos médicos se eles vêem as coisas extraordinárias que ele percebe, e fala-lhes e conta-lhes com doçura, de uma maneira que eu não saberia repetir, suas impressões. Os médicos olham-no nos olhos, estes belos olhos que nunca foram tão belos e nem mais inteligentes, e dizem entre eles: "É estranho." Há, em Arthur, alguma coisa que eles não compreendem."

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Sacanagem

O amigo Ricardo Soca, etimologista, manda essas considerações para a Palavra do Dia: Antenor Nascentes propunha uma origem pouco verossímil para esta palavra, baseada no vocábulo árabe acaccá, que significa aguadeiro. Na falta de outra mais consistente, essa etimologia foi recolhida por alguns dicionários, embora Antônio Geraldo Cunha advertisse que sacanagem e sacana são duas palavras de origem obscura.

No Novo Dicionário Banto do Brasil (2003), Nei Lopes afirma que o étimo encontra-se no quicongo sàkana, brincar, divertir-se, jogo, divertimento. Este autor crê que a raíz de sàkana é a mesma de disokana, copular e também de sakanesa , acariciar, esta já mencionada por Silva Maia.

Houaiss data sacana no século XVIII e aponta como sinônimos canalha, devasso e espertalhão, enquanto sacanagem teria aparecido só no século XX, mediante a aposição do sufixo -agem, uma vernaculização do francês -age, empregado em português, entre outras coisas, para dar sentido coletivo a alguns substantivos, como em ramagem, folhagem, etc.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Khadji Murát


A última história contada por Léon Tolstói começa e termina falando de uma flor chamada bardana. Mas é uma novela que narra a saga de um guerreiro tchetcheno que viveu antigamente, numa época em que os tchetchenos já lutavam contra os russos. Tolstói, um dos maiores escritores da história de todas as literaturas, era um pacifista. Em Khadji Murát, no entanto, o tema é a guerra, com sua brutalidade e a coragem que exige dos homens.

O perfil do Czar Nicolau I, traçado neste livro, “com um olhar sem vida, o peito inflado e a barriga comprimida, que transbordava por cima e por baixo da compressão”, é o de um tirano insensível, cruel e ridículo. O poder absoluto, na maioria das vezes, está em mãos de pessoas medíocres.

Publicado em 1912, dois anos depois da morte do autor, Khadji Murát tem sua origem na época em que Tolstói serviu como oficial do exército russo no Cáucaso e ouviu dos camponeses a história do guerreiro que resolveu seguir o seu próprio caminho. Foi a última manifestação do vigor criativo de um grande escritor antes de morrer.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Verão


Sob calor superior a 40 gaus, Copacabana faz a alegria dos banhistas numa praia entulhada de corpos molhados de suor. Turistas acotovelam-se na beira-mar, a água fria provoca choques térmicos e os vendedores suados, bufantes, cobrem o espaço da areia com seus produtos contra a sede. O vendedor de sacolé fatura R$12 mil por semana e o de água de coco R$400 por dia.

Na Barata Ribeiro, os bares estão com todas as mesas ocupadas e reclamam da pontualidade na entrega do chope. As fábricas não conseguem atender aos pedidos, a produção ocupa toda a capacidade instalada. Os clientes esvaziam o copo de uma só vez, ávidamente, a curtos goles, quase sem respirar.

Os velhos se abanam, disputam a sombra, o sol atravessa os chapéus, muitos desejam chuva ao mesmo tempo em que revelam o temor da destruição que pode trazer. Na esquina, Marquinhos, molhado de suor, vocifera, olha para o céu e cospe para cima.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Biutiful

A arte já mostrou muitas vezes que a poesia pode ser encontrada no lixo e este filme, com grande impacto, confirma esta verdade. Num olhar profundo e inquietante para o submundo de Barcelona, o diretor mexicano Alejandro González Iñárritu comprova o talento que já mostrou em obras como Amores Brutos (Amores Perros), Babel e 21 Gramas.

Iñarritu tem uma linguagem pessoal, anti-hollywoodiana. Em Biutiful, conta com um elenco de grandes atores, liderado por Javier Bardem. Sua personagem, Uxbal, cuja vida atormentada despenca numa queda livre, tem a transcendência dos anti-heróis trágicos cujo destino está traçado e dele é impossível afastar-se.

A triste realidade dos imigrantes clandestinos na Espanha, a corrupção e a miséria junto com o drama da doença e da morte fazem o pano de fundo para uma história de angústia sem salvação. Num mundo que não admite a redenção e só reconhece o fracasso.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Um bicho da terra tão pequeno




A postagem de ontem talvez ficasse melhor ilustrada com a última estrofe do primeiro canto de Os Lusíadas:




No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Depois da chuva


A cidade rescende um clima angustiado e depressivo e o calor parece aumentar essa atmosfera de luto. A morte de setecentas pessoas toca a todos porque poderia ter acontecido a qualquer um e expõe nossa fragilidade.

Havia a crença de que apenas os pobres da periferia e das encostas estavam ameaçados pelas tempestades e inundações. As últimas chuvas vieram provar que a tragédia não escolhe suas vítimas pelo nível da renda.

Mas o noticiário traz os exemplos: quanto mais pobre o país, maior é o número de mortos nos desastres da natureza. O sofrimento do Haiti é maior que o da Australia.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Velhos bistrôs


A ânsia de modernidade pouco a pouco vai mudando a cara dos bistrôs parisienses. Surgem novas casas, com a decoração da moda, clean e impessoal, bem ao gosto dos padrões novaiorquinos. Mas alguns dos velhos bistrôs resistem com força e galhardia.

O La Grille de Montorgueil (50, rue Montorgueil) mantém o espírito da velha rua e no cardápio exibe pratos como L’os à la moelle, um osso com tutano feito no forno de sabor fino, untuoso, incomparável.

Já no Chez Denise, também conhecido como La Tour de Montlhery (5, rue des Prouvaires), reina a tradicional cozinha burguesa num ambiente que nada mudou nos últimos 60 anos. Jacque, o patrão, morreu nos anos 90 mas Denise continua no comando desse bistrô sempre cheio dos habitués na busca de um mouton aux haricots, da choux farcie ou da tête de veau, obra-prima da cozinha popular da França.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Quai Branly


Desde Louis XIV, com o Palácio de Versalhes, os governantes franceses amam deixar sua marca construindo monumentos que pretendem eternizar sua passagem. Napoleão, com o Arco do Triunfo, entre outras grandes edificações; Napoleão III com suas pontes sobre o Sena, Pompidou com o centro que levou o seu nome, Miterrand com as pirâmides do Louvre, todos tentam preservar a própria memória.

Jacques Chirac, que deixou o governo em 2007, inaugurou um ano antes de terminar seu mandato o Museu do Quai Branly, uma bela arquitetura que abrigou o antigo Museu do Homem e se convertou no Musée des Arts et Civilisations d’Afrique, d’Asie, d’Océanie et des Ameriques, culturas denominadas não ocidentais.

Sua museologia é clássica, com poucos recursos oferecidos pela moderna tecnologia, mas o projeto arquitetônico do célebre Jean Nouvel é criativo e de uma beleza extraordinária.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Même la pluie


Icíar Bollaín, bela atriz espanhola, resolveu aceitar os desafios da direção e aparece agora com o seu nono filme, Même la pluie (También la lluvia, no original), que acaba de estrear em Paris. Alguns exageros retóricos de um roteiro político não comprometem a qualidade final de uma história bem contada, apoiada num elenco emocionalmente engajado no protesto contra as seculares iniquidades da América Latina.

Rodado na Bolívia, o filme trata de um outro filme, este sobre a chegada de Colombo à América e se detém na luta dos indigenas do continente contra o cruel colonizador, que o submete e o escraviza.

Passando-se no ano 2000, antes portanto da chegada de Evo Morales ao poder na Bolívia, a história contada por Icíar denuncia a exploração desses povos pelas diferentes formas de poder, no passado e no presente, e até pela própria produção do filme que ela está dirigindo.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Sob chuva


O frio úmido de Paris não respeita agasalhos, penetra pelos tecidos. Acabou a neve mas hoje chove miúdo, fazendo lembrar a “triste chuva de resignação” do poema de Bandeira. A cidade no entanto é bela, mesmo sob a chuva de inverno.

Entre as dezenas de exposições, destaca-se a das Galeries nationales du Grand Palais: a obra de Claude Monet, o impressionista que abriu as portas para a arte moderna. É a mais importante das exposições dedicadas a este artista nos últimos trinta anos, desde 1980, quando foi feita em forma de homenagem uma retrospectiva da sua obra.

Nos cinemas, entre as estréias da semana destaca-se Somewhere, de Sofia Coppola, cineasta que nos últimos tempos tem se dado melhor do que o pai, e o espanhol Même la Pluie (Even the Rain) de Iciar Bollain, que parece interessante.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Imigrantes


A classe média francesa não anda nada satisfeita com os imigrantes estrangeiros, principalmente os que vêm dos países da África. Colonizados pelos franceses, chegam falando francês mas trazem a marca da pobreza e da sua própria cultura.

A sociedade branca tem dificuldade em absorver esta nova população, que é colocada à margem e os jovens reagem com revolta promovendo desordens, queimando automóveis.

O antigo país das liberdades e da tolerância, onde a polícia nem carimbava os passaportes de quem chegava, perdeu a inocência e encontra-se hoje policiado e atento a quem vem de fora. Fecha-se, tem medo e endurece.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Três lugares


Três lugares interessantes no último dia do ano. O Forum é um botequim de bom gosto, de ambiente inspirado, onde às quartas e sábados se reunem os feirantes de Cahors para beber um copo de vinho. A bela e sóbria decoração atrai também as mulheres bem vestidas que vieram às compras e se reunem para um café e saber das novidades.

O Auberge des Gabarres, frequentado ao mesmo tempo por operários e notáveis da cidade, é um restaurante incomparável, onde Jaja dá conta da cozinha e Alain, o marido, atende sozinho às 16 mesas sempre ocupadas. O segredo é o menu único, composto de uma sopa, entrada, prato principal e sobremesa. E vinho copiosamente. Tudo a 22 euros por pessoa.

Na Nuit de St. Sylvestre, como os franceses chamam o reveillon, um lugar calmo e sem barulho, a não ser o que faz o maitre, à meia noite, percorrrendo o salão e batendo com uma colher de pau numa panela. Le Balandre é administrado pela mesma família há três gerações e o chef Gilles Marre o mantém como uma referência da gastronomia do Sudoeste.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Lauzerte


A apenas 35 quilômetros de Cahors, Lauzerte domina do alto um belíssimo vale da região do Tarn e Garonne. Tem apenas 1.500 habitantes, embora regurgite de turistas nos meses de verão. Esteve no apogeu nos séculos XII e XIII, quando seu papel defensivo se aliou ao de etapa na viagem dos peregrinos que se dirigiam a Santiago de Compostela.

A maioria das cidades do Sudoeste francês teve um papel importante como parte dos caminhos de Santiago, um movimento que mudou a face da Europa e dos povos desse continente. Algumas desapareceram, outras entraram em profunda decadência e poucas se mantiveram com o traçado e arquitetura da sua época.

Lauzerte é um monumento preservado da Idade Média. Merece bem o título de uma das “plus beaux villages de France”, que recebeu do Governo junto com poucas outras deste país com tantas belas cidades.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Louras e morenas


Entre nós, as morenas e mesmo as mulatas pintam os cabelos para sentirem-se louras. No verão, desfilam seus cabelos pintados de amarelo e com a pele queimada, escurecida pelas horas de deliberada exposição ao sol.

Aqui onde me encontro, no que chamam de França profunda, no interior do país, são as louras verdadeiras que pintam os cabelos de preto, numa tonalidade quase azulada de tão escura. Em contraste com a pele muito branca, a moda dos cabelos pretos completa-se com a forte pintura dos olhos e da boca.

Com este ar de vampiras, as alvas francesas fazem contraponto às nossas falsas louras, mulatas. Juntas, elas constituem o enorme mercado consumidor da coloração de cabelos, a valiosa pérola da indústria mundial de cosméticos.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O Agneau du Quercy


O Agneau do Quercy é um carneirinho alimentado apenas pelo leite da mãe, que foi criada no pasto das terras calcáreas das margens do rio Lot. Por isso tem um sabor especial. É o único cordeiro do mundo de origem controlada, com selo de qualidade e pedigree reconhecido.

No Auberge du Vieux Cahors ele é servido acompanhado de champignons, vagem e batatas rostie. É um prato que atráis gourmands de todas as regiões da França porque, dizem, é bem melhor quando comido na terra natal.

O Auberge du Vieux Cahors é um bom restaurante, de cuidadoso cardápio de pratos regionais: além do carneirinho, o foie gras e o pato confit valem a visita. São pratos untuosos, próprios para enfrentar o frio intenso desta época do ano.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Noël


Como festa cristã, o Natal se reveste de caráter cerimonial religioso. A tradição misturou alguns símbolos de nascimento e morte. O costume de fazer jejum existente nas religiões arábico-judaico-cristãs foi substituido em algumas culturas pela proibição de carne vermelha, pois não deveria existir sangue na memória da vida e da morte de Jesus.

Entre nós, a venda de bacalhau quadruplica nas festas de fim de ano e uma infinidade de perus são sacrificados para que a carne branca não nos traga a lembrança do sangue.

Entre os franceses, o fim de ano se caracteriza pelos enormes pratos de frutos-do-mar, com destaque para ostras e crustáceos. É também a época das enormes intoxicações alimentares, desinterias destruidoras. Os hospitais da França se preparam, a cada passagem de Natal e Ano Novo, para os milhares de casos de desidratação que também simbolizam este tempo de misticismo e festa.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Monrovia


Um viajante que perde a bagagem é como uma tartaruga que perdeu o casco, foi o pensamento que me ocorreu olhando para a imensa fila no aeroporto de Toulouse, esperando para reclamar as malas desaparecidas no meio do cáos aéreo da Europa nesta véspera do Natal.

Eram tartarugas sem casco e aflitas, caladas, olhando para o funcionário que, lá longe, no começo da fila, fora designado para explicar o que não sabia.

“A Air France é uma companhia muito séria”, me disse o velho que bebia ao meu lado e que também perdera a sua mala. Acho que ele tinha razão porque muitos, alguns dias depois, recuperamos nossas perdas pelos esforços do pessoal que ouvia em silêncio tantas imprecações. Ao fim, me lembrei de Sergio Porto, cuja mala certa vez foi desviada para a Monrovia e ele pensava que monrovia era uma doença da pele.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Caos


As multidões nos aeroportos, de rosto cansado e ansiedade nos olhos é a marca da Europa nesses dias que antecedem o Natal. Centenas de pessoas tiveram de refazer seus programas para as festas de fim de ano por conta dos vôos cancelados pelas nevascas.

Nas cadeiras do aeroporto Charles De Gaulle, no centro da confusão, as crianças choram e os passageiros gritam com os perplexos atendentes da Air France, que olham para as telas do computador e estas não lhe dizem nada. A maioria dos monitores anuncia vôos cancelados.

Depois de uma viagem que durou exatas quarenta e duas horas, ainda não cheguei ao destino. Em Toulouse, uma parada, está frio mas não há neve. E o cassoulet da cidade, junto com o vinho de Bordeaux, ajuda a aquecer a quem perdeu a bagagem.

domingo, 19 de dezembro de 2010

De partida


Mais uma vez de partida para o Sudeste da França. Direto até Toulouse, com troca de avião no Charles de Gaulle, e de lá para as pequenas cidades da região, com base em Cahors , que conheço de longa data. Parece que a safra dos vinhos deste ano veio forte, encorpada, densa.

Está fazendo muito frio no Sudoeste e há neve em lugares onde ela não costuma cair, o que aumenta a suspeita de que o clima está mudando em todo o planeta. Será que as teorias da catástrofe climática são mesmo procedentes?

Tenho notícia de que em Toulouse a feirinha de Natal da Place du Capitole está movimentada como nunca e há filas enormes em suas barracas de vinho quente e comidas regionais. A quermesse de Natal em Cahors também dizem que não fica atrás. Já mandei avisar aos profissionais do Bar du Centre que estou chegando.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O bolina


No extraordinário O Rio de Janeiro do Meu Tempo, Luiz Edmundo exibe seu talento de repórter e descreve com precisão como era a cidade na virada do Século XX. Descreve cada uma das ruas do centro. Seus prédios, lojas, cafés. E também a gente que habitava o Rio provinciano e calmo dos anos 1900.

Entre os tipos da época, ele destaca o bolina, o sujeito que subia nos primeiros bondes elétricos, sempre cheios, para se encostar nas mulheres e usufruir de um arriscado momento erótico. Havia escândalos de juntar gente, pois nem sempre as damas aceitavam sem protestar a intimidade do contato físico roubado pelo bolina. Edmudo acusa de serem adeptos da bolinagem algumas figuras importantes do seu tempo.

Parece que o metrô contemporâneo trouxe de volta o personagem, a ponto de terem reservado um carro exclusivo para mulheres, com o objetivo de protegê-las do assédio infame do bolina. Mas tenho visto alguns espertos bolinas pulando para o carro feminino, nas horas de pico. Dentro do vagão lotado de mulheres, eles procuram situar-se estratégicamente para o encosto, enquanto exibem um jeito cândido e um olhar distraido mirando um horizonte inexistente.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Obras-primas


Em 1876, quando Brahms estreou sua Primeira Sinfonia, o mundo musical o saudou como sucessor de Beethoven, que morrera em 1827. Foi um sucesso. O maestro Hans von Bulow, depois de ouvi-la, disse que a primeira sinfonia de Brahms significava a décima de Beethoven.

Quando a Nona e última sinfonia de Beethoven (http://www.youtube.com/watch?v=sE-sS_1JQZI) foi tocada pela primeira vez, em 7 de maio de 1824, em Viena, tornou-se uma sombra a inibir a criatividade de todos os compositores que o sucederam. Nenhum deles tinha coragem de compor uma sinfonia, depois de ouvir aquela obra-prima composta por um genio verdadeiro.

A admiração de Brahms por Beethoven era enorme mas ele ousou compor uma sinfonia. Nos primeiros acordes, dizem os historiadores, ele se dirige a Beethoven para enunciar, musicalmente: “do mais alto monte, do mais profundo vale, eu te saúdo”. Ouça um trecho da obra-prima de Brahms, regida por Otto Klemperer: http://www.youtube.com/watch?v=HkgiwJTXHlE

domingo, 5 de dezembro de 2010

Tetro


Francis Ford Coppola sabe fazer filmes. Sua obra comprova isso. Mas talvez o sucesso que obteve ainda muito jovem, com a trilogia do Poderoso Chefão, tenha de alguma forma comprometido o que veio a fazer depois. Com estes três filmes, realizados em cima do forte argumento de Mario Puzzo, ele produziu sua obra-prima e nunca mais conseguiu repetir o feito.

Tetro é um filme que conta com bons atores, o expressivo cenário da Boca, em Buenos Aires, e uma direção criativa. Narra a história de um escritor angustiado pelo próprio fracasso, pela culpa e pela memória de um pai que o destruiu emocionalmente. Parece uma boa história. E é.

Mas talvez tenha faltado a Coppola a companhia de um roteirista capaz de conduzir essa história sem os excessos melodramáticos que a compometem e deixar para o diretor os exercícios de estilo nos quais é mestre. Mesmo assim, a triste história de Tetro, escrita, produzida e dirigida por Coppola, não consegue nos emocionar.