terça-feira, 28 de junho de 2016

Paisagens



Numa manhã de frio de um inverno distante, olhou o mar, sentiu na boca o gosto do vento carregado de sal e imaginou paisagens de coxias que não terminavam. Prolongavam-se até os confins do horizonte, como se vê no fundo de algumas pinturas de artistas florentinos do Renascimento. Pequenos morros arredondados, um após o outro, cobertos por uma relva verde, meio descolorida.

Na divagação do pensamento, era assim que via um mundo onde a quietude acenava para os que viviam à sombra da fumaça dos escapamentos. Ou para os prisioneiros imobilizados entre paredes de cimento nos lugares onde o sol era incapaz de iluminar mas existiam sombras sem explicação. Nem som, nem música ou zumbido dos insetos vespertinos perturbavam o silêncio absoluto.

Nuvens de chumbo cruzavam lentamente o céu em que o azul esquecido confundia os olhares fixos dos condenados. Nada existiria sem cansaço. Sequer o sopro de alguma memória esquecida no tempo ilimitado dos delírios. Apenas o silêncio, o vento de sal, as paisagens que não significavam nada, as ondulações de lembranças sem sentido.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

O Terrível



Fisicamente forte, de corpo moldado por halteres e exercícios de força, amava inspirar temor e espanto. Entrava nos botequins agitando uma maça medieval, batia com ela nos balcões, dava ordens ampliando a potência da sua voz muito grave. Impossível acreditar que, além daquela exibição, havia a candidez de um menino na alma de um samaritano.

Gostava também de armas de calibres cinematográficos. Sabia usá-las e com elas desenvolveu a exatidão de uma pontaria certeira. Em plena madrugada, atingiu com um tiro o aparelho de som estridente e agressivo na festa de um prédio em frente. Desfilava pelo bairro de sunga e sem camisa, em qualquer tempo, de calor ou frio, de sol ou de chuva.

Alimentava os cães de rua, conversava animadamente com os mendigos, enternecia-se dando ajuda às velhinhas solitárias. Fascinava as crianças, que lhe devotavam profunda admiração. Conversava com elas como se fossem adultas, contava-lhes façanhas imaginárias. Desapareceu no mar, numa noite em que bebeu uma garrafa de vodca e mergulhou num ponto qualquer além da quebrada das ondas. Gostava de ser chamado Ivan, o Terrível.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Ladrões de cemitério


A conversa derivou para a morte, destino comum de todos os viventes e que levou Miguel de Unamuno a escrever “toda vida ao final é um fracasso”. E daí alguém lembrou a existência dos ladrões de cemitério.

Existem três tipos de roubos que são praticados contra os mortos. O mais comum é o roubo das flores, logo depois do enterro, quando a família e os amigos se retiram. O morto, deixado na solidão absoluta, não precisa de flores e elas ainda estão frescas e custam caro no mercado da morte.

Outro tipo é o roubo do caixão, um ítem de valor deixado para alguém que não precisa de mais nada e que pode ser revendido para acomodar outro morto. E, finalmente, o assalto ao próprio cadáver para a retirada das próteses dentárias de algum valor. "Homo homine lupus", o homem é o lobo do homem, os romanos diziam antigamente.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

A pátria




A pátria é um país injusto. O amor à pátria é um sentimento difuso que mistura os antepassados, a família, o círculo onde se vive. E a língua que falamos. A linguagem é a profunda relação de amor com o que nos cerca, o ambiente, o pensamento e a reflexão sobre o mundo. O ódio não tem linguagem, sua expressão é apenas ele mesmo, o ódio.

A mãe Pátria, generosa para alguns e madrasta para tantos? Os miseráveis de um país são filhos da pátria? Os muito ricos, proprietários de tudo, são eles os únicos representantes da pátria? “A minha pátria é como se não fosse”, escreveu Vinícius, que no exílio chorava de saudades da sua pátria.

Para Soljenítsin, sua pátria era a língua em que escrevia. Longe, não conseguia escrever e preferiu se submeter à perseguição do governo do que ficar, aparentemente livre, distante da Russia. Sem poder usar na rua a sua língua, que era a sua pátria. São tantos os significados da pátria que ela pode se perder no desespero de seus próprios órfãos.

sábado, 11 de junho de 2016

Amor e morte



As mais comoventes histórias de amor são as mais tristes. Desde Julieta e Romeu e Tristão e Isolda até a frustração do amor perdido de Rick Blaine e Ilsa Lund que se esvaiu no nevoeiro da cidade de Casablanca. No imaginário das gentes o amor é infeliz e fugaz apesar do sonho de ser eterno.

Arthur Rimbaud manifestou todo o seu tédio existencial dizendo que já tinha lido todos os livros e o amor é triste. Uma declaração inesperada de um jovem de vinte anos mas era assim que ele se sentia em suas iluminações. Shakespeare, ao contar os últimos momentos de dois adolescentes apaixonados, alinhou o amor e  seus conflitos com a morte trágica do seu final.

Eros e Thanatos, o instinto da vida e a compulsão da morte, os dois sentimentos em luta nos intestinos da alma humana. Freud os descreveu magistralmente em sua obra. Foi busca-los na mitologia dos gregos. Eros, o mais belo dos deuses, era filho da carência em busca da completude. Thanatos era filha da Noite. Embora ambos fossem descendentes de Caos, o amor jamais poderia existir entre eles. Talvez para isso tenhamos sido feitos. Para a suprema loucura do ódio mas também para a esperança representada pela descoberta do amor.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Clandestino




De uma pequena van sem qualquer identificação, desce o entregador e se dirige ao botequim. Em seus braços, algumas poucas embalagens descaracterizadas. Vejo que se trata da distribuição de cigarros. Existem poucos fumantes, hoje, em comparação com um tempo não tão distante. Mesmo no botequim onde o entregador faz a entrega é proibido fumar.

O fumo foi levado à Europa pelos descobridores que aprenderam a usá-lo com os indígenas do Novo Mundo. Por mais de quinhentos anos proporcionou ao mundo prazer, elegância e charme. Enormes, poderosas empresas se criaram com o plantio de tabaco, a fabricação e a venda de cigarros em belas embalagens. O marketing vendia mais do que prazer. Prometia um estilo de vida de acordo com o desejo e as emoções do fumante.

As grandes marcas investiam somas imensas em publicidade porque o retorno em vendas era garantido pelos novos contingentes de consumidores que entravam no mercado. Eram adolescentes que compravam o estilo de vida dinâmico, esportivo e prazeroso que lhes era prometido. Sem publicidade nem as antigas e belas embalagens, que hoje ameaçam doenças horríveis a quem fuma, o cigarro é um produto amaldiçoado, clandestino e proibido. Para onde foi desterrado o prazer?

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Ateu



Doka costumava dizer que o sofrimento de uma criança é a prova da inexistência de Deus. Ele usava outros argumentos, comparando diferentes religiões para concluir com a sua tese que negava qualquer tipo de divindade. Penso que procurava, dessa forma, confrontar a religiosidade mística da sua própria família.

Citava Sartre num comentário sobre “Os Irmãos Karamazov”, ao dizer que se Deus não existe tudo é permitido mas acrescentava que esta é também a causa do desespero humano. Suas digressões teológicas terminavam quando dizia que discutir os dogmas de qualquer religião só é compreensível para quem admite a transcendência.

A crença religiosa, segundo Doka, tem origem na dimensão finita da humanidade, na sua solidão e sentimento de abandono. Imaginar a presença divina consolaria toda a impotência do homem diante do desconhecido. Antes do dia em que deixou de aparecer nos lugares que frequentava e desapareceu para sempre, Doka dizia que negar a existência de Deus é aceitar conscientemente o destino trágico da vida.