terça-feira, 30 de junho de 2015

Inverno

Temperatura civilizada, se comparada com a dos meses quentes, ruas tranquilas e mulheres vestidas são os sinais visíveis do inverno num bairro que vive do verão. Copacabana não se dá bem com o frio. Os comerciantes reclamam, os botequins esvaziam-se, não há arrastões e até os criminosos dão um tempo. Será que países solares não conseguiriam manter sua identidade abaixo de 18 graus?

É difícil o trottoir das meninas do sexo nas noites frias e seus clientes refluem. A noite acaba mais cedo, à meia noite a praia encontra-se erma, as ruas internas estão à espera de fantasmas. Na sombra das árvores e das marquises, cães misteriosos se aninham ao lado dos moradores de rua e protegem seu sono.


Num lugar que vive do turismo do verão, seus habitantes pagam preços de turista mesmo no inverno. Marquinhos, o maluco da vizinhança, se diverte. Sua trágica aparência, estrábico e raivoso, assusta as meninas louras, estrangeiras de pele rosada adquirida ao sol de um inverno ameno e aprazível.

sábado, 27 de junho de 2015

Palavras

Cada palavra traz consigo uma carga de nexos que transcende o que ela própria significa. Há nelas um mistério capaz de dizer muito alem do que dizem, modificar entendimentos, surpreender como na poesia, que é uma arte feita de palavras. Uma só palavra pode significar o que diz e o que não diz, outros sentidos, alguns contraditórios.

Produzem emoções confusas, traduzem ternura e dor, são cruéis para expressar separações e conflitos. O último pensamento da vida concentra-se no esforço de encontrar uma palavra quando elas não existem mais.


A história da inteligência é a da construção de sentidos. Foi o que trouxe ao homem capacidade de interpretar o mundo, a partir de uma linguagem capaz de mergulhar no conhecimento das coisas. Se não houvesse a palavra ódio, ou não existisse a palavra amor, os sentimentos que elas definem continuariam a nos afetar mas não seríamos capazes de compreender o que significam.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Quinn

Anthony Quinn, ator de tantos filmes em Hollywood, nasceu em Chihuahua, no México, em 1915, e morreu em Boston, em 2001. Embora naturalizado americano, não cortou os laços com a sua terra. Parece ser esta uma das idiossincrasias dos artistas. Eles se sentem estéreis quando se desligam do lugar onde nasceram.

Pouco antes de morrer, Quinn deixou registrada a forma como imaginava seus funerais. Queria que fossem na forma tradicional dos índios do seu país. Eles não enterravam nem cremavam seus mortos e Quinn descreveu como desejava que fizessem com seu corpo.


Pediu para ser levado em procissão por seus treze filhos ao alto de uma montanha e lá fosse deixado para servir de pasto às aves de rapina. Elas comeriam seu corpo e depois o espalhariam cagando pelos mais longínquos territórios do seu país. Foi uma bela declaração de amor à pátria enunciado por alguém que em breve ia morrer.

sábado, 20 de junho de 2015

Cidades

Há cidades que morrem assassinadas. A construção desordenada dos edifícios, a derrubada de monumentos e a aparição de monstros arquitetônicos destroem sua personalidade. A pobreza, a ocupação das regiões centrais pela miséria descaracterizam a paisagem urbana, inauguram lugares tristes.

As cidades se movem, os velhos centros são abandonados e surgem outras regiões para onde as pessoas se mudam, como aconteceu no Recife, que se mudou para a praia. No Rio de Janeiro, as praias começaram a ser habitadas no século 20. Tantos bairros que foram chamados nobres deterioram-se e são esquecidos, neles nada mais acontece.


As cidades refletem o pensamento do tempo em que vivem, sua riqueza ou sua miséria. E também a mentalidade da sua época. Costumam perder-se, se não são amadas pelos que nelas vivem. Quando ricas, transpõem para seus edifícios o exibicionismo de seus milionários. Pobres, expõem sua tristeza, a violência e o caos.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O tempo

Os dias transcorrem devagar quando somos crianças. Gostaríamos de ser como os adultos mas o tempo não passa e as crianças continuam crianças contra a própria vontade. Só o acúmulo dos anos acaba por inverter o desejo e traz a sensação de como a vida era diferente e muitas vezes feliz.

Até os quinze anos o tempo parece lento mas a partir daí a velocidade dos anos atropela a vivência e de repente estamos habitando o mundo dos adultos, complexo e contraditório, competitivo e violento. Tanto idealizamos a felicidade das crianças que esquecemos os momentos de temor e angústia que costumam habitar o universo infantil.


O homem adulto continua o mesmo dos seus primeiros anos. Os medos, decepções e deslumbramentos o acompanham por toda a vida. Às portas da velhice, assoma às vezes algum sentimento indefinido de dor ou tristeza difusa. A causa encontra-se perdida no passado, quando o mundo era incompreensível e ameaçador para uma criança que apenas envelheceu, com a rapidez do vento das marés tardias.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Adagio

O vento suave soprava cedo nas manhãs.
Depois se misturava à poeira e se transformava em redemoinhos.
Suspendia folhas ao sol, transformava a cor dos horizontes.
Concebia os tons de uma paisagem que se estendia no deserto,
lugares ermos, desconhecidos, vistos em algum sonho alucinado.
Durante as madrugadas havia silêncios cobertos pela noite,
longe da imaginação, segredos nunca revelados.
Caminhos encobertos de plantas, pontos de fuga,
lugares onde se encontravam fontes,
início das viagens, sons agudos,
sono de crianças que um dia nascerão.
São assim, como foram,
antes de existirem sombras e sereno sobre as dunas
que se movem e se afastam com a ventania,
desfazem-se,
transformam-se em mares de areia.
Sussurros no silêncio de águas profundas,
onde os peixes se devoram construindo símbolos,
noturnas traduções,

nuances em que a vida se constrói.