domingo, 27 de abril de 2014

A face do mistério

Para os religiosos, o mistério não é para ser desvendado porque situa-se no campo inquestionável da fé. Mas a inteligência tem desafiado a fé e procurado a explicação de tudo. Desde os filósofos gregos e da descoberta do Sol como centro de um sistema de planetas onde estamos confinados e vivemos nossa curta vida. A aventura humana na busca do conhecimento trouxe também a consciência do quanto somos limitados e como é ampla a nossa ignorância.

Somos prisioneiros num labirinto e nele nos perdemos olhando para o infinito procurando enxergar na escuridão. Desconhecemos a causa da existência e o efeito dos fenômenos, perguntamos se há vida em outros pontos da galáxia. O homem olha para o céu e se interroga sobre a enorme solidão da sua espécie.


Acordamos há pouco e tateamos na sombra imensa, escura, desconhecida. Diante de nós encontra-se a compreensão do que buscamos desde sempre, nosso pensamento toca na superfície e recua com medo da descoberta. Este é o desafio que transcende a lucidez e mergulha o espírito na loucura para entender o caos.

terça-feira, 22 de abril de 2014

O tempo e o grito

Este céu azul e a temperatura amena do outono tornam bons estes dias em que o calor sufocante do verão ficou na memória. Talvez prenunciem um inverno frio, pois vivemos a era dos extremos e tudo se radicaliza. O tempo, as idéias, as temperaturas do clima. O horizonte político do nosso entorno, eventos, protestos, tudo conspira para uma atmosfera pesada.

No ambiente de uma cidade de trânsito parado, com todas as dificuldades previsíveis mas não evitadas, as ruas parecem dizer que as grandes metrópoles fracassaram. Seus habitantes sofrem com a violência em todos os seus significados e parecem conformados. Os protestos são apenas protestos, nada propõem a não ser mais violência.


Marquinhos, o maluco da vizinhança, cuja face expressa sempre aquela mistura de perplexidade, ódio, dor e compreensão de tudo, ouvia hoje pela manhã o seu rádio que está sempre mudo. Olhava para o alto dos edifícios, prendia a respiração e de vez em quando soltava um grito forte, talvez de revolta, quem sabe de desespero ou mesmo de ironia.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Shakespeareana

Shakespeare escreveu sobre a tragédia que ronda os poderosos. Sua obra penetrou o drama de personagens históricos da aristocracia de todos os tempos, como Julio Cesar, Ricardo III, Macbeth e  Hamlet, o infeliz príncipe da Dinamarca. Todas as suas peças são de extraordinária atualidade e nunca deixaram de ser representadas nos palcos ou em filmes nos últimos quatrocentos anos.

O que faz das suas histórias grandes momentos dramáticos é a reflexão sobre o poder, a glória e a natureza humana. Ao longo de quatro séculos, tem mostrado a suas platéias que os poderosos estão expostos, como todo mundo, aos dissabores e às armadilhas do destino.


Acompanhamos agora o drama que se abateu sobre Eike Batista, um príncipe do capitalismo que despenca da glória diante da platéia formada por todos nós, os simplórios, os atônitos. Um homem que podia tudo vive diante do público uma sucessão de quedas, desde a perda da bela mulher e de suas ricas empresas à ameaça de prisão e desonra. A vida, mais uma vez, imita as tragédias imaginadas pela arte.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Cidades

A cidade onde nasci não existe mais. Enormes edifícios construíram uma muralha, ao lado dela largas avenidas rasgam o que restou de paisagem. As estatísticas de violência urbana cresceram sufocando a paz  em que foram vividas infância e adolescência.  Já não pertenço mais à amena província onde cresci.

Também não sou daqui, desta cidade onde vivo, porque as raízes não se fincaram no chão. Existe uma atmosfera de gazes e de sons estrangeiros, diversos modos de falar e de entender o mundo, parcos cumprimentos, uma guerra nos bairros da periferia. A morte espreita a vida.


À noite sopram ventos sem origem, peixes morrem fora d’água, nuvens constroem um céu de chumbo e os homens avançam em luta contra a natureza. É uma cidade de mitos cultivados, crenças difusas, tempestades perfeitas. Habitada pelo medo, onde grupos de crianças andando na rua podem significar uma ameaça sombria.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Bem-te-vi

Acordei com um bem-te-vi cantando em minha janela. O sol acabara de nascer e uma névoa tentava mas não conseguia esconder a sua luz que era suave àquela hora. Um vento frio soprava do mar para as ruas de Copacabana. Um dia de outuno, deste outono estranho em que não chove, as folhas não caem e a fumaça dos automóveis condensa-se nos engarrafamentos que hoje fazem parte da paisagem urbana.

Os bem-te-vis são aves espertas, adaptáveis a qualquer ambiente, sobreviventes em qualquer tempo. Seu forte canto me acorda neste bairro onde a natureza encontra-se ferida pelos maus-tratos que recebe mas insiste em prevalecer.


Os índios tupis a chamavam de “pitanga guassu”  - pitanga grande - e na Argentina lhe dão o nome de “bichofeo”. Como chamar uma ave como o bem-te-vi de bicho feio? Ele pode ser visto em quase todos os países, é um dos melhores distribuidores de sementes pelo mundo e hoje, bem cedinho, pousou em minha janela e me despertou com as três sílabas  inconfundíveis do seu canto.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Hugo

Estavamos juntos em nossa passagem para a adolescência. E juntos vivemos as primeiras aventuras da existência, curiosos, surpreendidos, alegres ou mergulhados na dor sem fim e sem causa dessa estranha fase da vida. O tempo nos manteve juntos mesmo habitando cidades distantes. Quando nos víamos continuavamos a conversa interrompida pela separação. No mesmo rítmo, na mesma inquietação.

Recebi hoje a notícia da sua morte. Nunca estaremos preparados para morte, a maior das perdas, a mais dolorosa despedida, o repentino vácuo onde o vazio dilacera as almas. Carlos, que me trouxe a notícia, lembrou o poema de Auden: “Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come. “

E eu me lembrei de um poema de Edna St. Vincent Millay, que há muito tempo traduzi: “mais preciosa era a luz em teus olhos do que todas as rosas do mundo”. Sua memória é de poesia junto com o bom humor e a alegria que ele sempre irradiava.


Até breve, amigo Hugo.