sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Vôo para Vitória


O Galeão lotado e as longas filas nos balcões da Gol davam logo notícia de que algo fora da rotina acontecera. A frente fria fechara o aeroporto de Vitória desde a véspera mas naquele momento acabara de abrir e embarquei num avião lotado pelos passageiros do dia e pelos que haviam sobrado do dia anterior.

Quase chegando – é um vôo de 40 minutos, na saudosa e farta época da Varig era o tempo exato de duas doses de uísque – o comandante avisou que o tempo fechara de novo e dessa vez Vitória não abriria mais pelo resto do dia. E aterrissou em Belo Horizonte.

Fiquei na dúvida se ligava para o amigo Zé Alberto e o convidava para jantar no Mercado Municipal, ponto alto da boa gastronomia mineira, mas eu tinha compromisso no Rio, nesta sexta, e me contentei com a barrinha de cereal das modernas companhias. Lidei com o nervosismo das bonitas moças da Gol diante do tumulto de um avião lotado que surge inesperadamente, passageiros alterados, alguns sem conseguir voltar para casa depois de dois dias de tentativas vãs.

Consegui um lugar de volta para o Rio, depois de visitar o aeroporto de Confins, batizado como Tancredo de Almeida Neves.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Comunicação à distância


Num desses dias de calor que antecedem a chuva nesta primavera estranha, estava eu sem camisa, trabalhando no computador, quase nu, sozinho no escritório, quando o Skype entra no monitor com a imagem do bom amigo Jean Buclet, chamando de Paris. É como sempre um prazer falar com ele, vê-lo na tela e ouvir sua conversa inteligente, cheia de sabedoria.

Dessa vez, me chamou a atenção as contradições do clima em que vivemos. Ele, a 10 graus centígrados no outono do seu país, vestia um pullover dentro de seu apartamento ao lado da igreja de Saint Sulpice. Eu, práticamente nu como um índio da floresta amazônica, compensava os 30 graus com o ar condicionado que não conseguia vencer a temperatura quente da tarde de Copacabana.

Vivemos num mundo cada vez menor e cada vez mais próximo. O que diria disso o meu avô, que viveu em suas terras do sertão nordestino e pensava que o mundo, a partir das suas fronteiras, encontrava-se num planeta muito, muito distante?

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Vícios


O homem bebe para mudar sua maneira de ver o mundo, fuma pelo prazer da tragada, ingere drogas para alterar seu psiquismo e pratica execícios para obter a euforia que a endorfina lhe proporciona. E vicia-se, torna-se dependente a ponto de só sentir-se em estado normal depois de absorver a substância que vai equilibrar suas emoções, por algum tempo.

Compreendo todos os vícios e suas razões ligadas ao prazer mas percebo um certo mistério e tenho dificuldade de entender o vício do jogo. Doistoievsky escreveu com O Jogador uma de suas obras-primas e foi buscar no seu próprio vício a matéria do romance. Mas deixou por explicar o mistério das suas motivações mais profundas.

Acredito que o jogador compulsivo traz consigo um tal vazio, um tal sentimento de solidão e pobreza que é capaz de arriscat tudo num único lance que possa resgatar de vez a sua angústia. É disto que se alimentam as loterias, bingos, casas de jogo clandestinas e a própria Bolsa de Valores.

sábado, 24 de outubro de 2009

Cena em Copacabana


Antes do meio-dia ele senta-se à mesa do botequim que fica em frente ao colégio. Pede um café, abre uma revista e faz palavras cruzadas. Parece ser eximio nessa arte porque resolve os problemas e escreve cada letra com grande rapidez, mas nao parece concentrado no que faz, pois levanta a cabeça a todo instante e olha em direcao à porta do colegio.

Tem de aparência pouco mais de cinquenta anos, é magro, calado e triste. Seu olhar não divaga, permanece atento à porta do colégio de onde, ao meio-dia, sái o bando de adolescentes dispensados das aulas. Meninos e meninas vestindo uniforme na eterna algazarra de risos e mútuas provocações. Ele se levanta da mesa e se dirige à porta do colégio, onde encontra e abraça uma das garotas que acabam de sair pelo portão.

Os dois caminham abraçados, rindo um para o outro, ambos possuem traços fisionômicos bem parecidos. Dirigem-se vagarosamente ao ponto de ônibus onde ela pega um em direção à Barra. Ele ainda permanece na calçada, acena para ela que retribúi com o braço de fora da janela do ônibus. Então ele volta ao bar, senta-se à mesa, pede um chope e fica por lá fazendo palavras cruzadas pelo resto da tarde.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Kurosawa


Revi ontem, mais uma vez, Sete Samurais, de 1954, com a mesma sensação de ver pela primeira vez. Akira Kurosawa tem a capacidade dos grandes artistas de enriquecer de tal forma o seu trabalho com detalhes sutís que só a observação continuada e atenta vai aos poucos revelando. As cenas do filme, desenhadas com meticuloso enquadramento e composição antes de serem filmadas, misturam-se a diálogos de alta qualidade literária e fina sensibilidade aos fatores da vida e do destino dos homens.

Kurosawa foi um artista raro e um cineasta que de um modo ou de outro influenciou todos os filmes ocidentais de alguma qualidade que vieram a ser produzidos na segunda metade do século passado. Tanto os épicos quanto as aventuras de samurais que produziu foram vistos e imitados em Hollywood com versões mais pobres.

Penso que ele não tem sido cultuado como deveria.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Viral versus TV


Já falei aqui sobre o assunto, mas volto a ele por observar que os conceitos fortes e memoráveis que marcaram a revolução criativa da propaganda são aos poucos substituidos pelos shows de produção tecnológica do chamado marketing viral. Os grandes anunciantes preferem investir na feitura de filmes pirotécnicos para exibição via internet. Eles enchem de tal forma os olhos dos internautas que estes não resistem em passar o comercial uns para os outros. formando extraordinária audiência.

A Procter & Gamble, gigante americano, diz que anunciou a marca Physique de xampu usando o viral e só gastou o dinheiro aplicado na feitura do filme. Pela forma tradicional, com anúncios na TV, seriam necessários alguns milhões de dólares. E a Honda reposicionou sua marca Accord com outro viral que, num show de efeitos tecnológicos, juntava todas as peças e construia um carro. Veja aqui o comercial.

O marketing viral é isso: filmes que divertem e surpreendem o homem sozinho diante do computador que, num gesto típico dos usuários da rede, passa adiante o que vê para todos os contatos da sua lista de endereços de email. Lucro para os anunciantes, prejuizo para a TV. E este é um movimento sem volta.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Baader-Meinhof


A dura política intervencionista americana nos anos 70 teve como contraponto inúmeras ações revolucionárias da extrema esquerda, em vários países. A maioria delas surgidas no movimento estudantil alvo de repressão violenta, como foi o caso de diversas siglas que atuaram no Brasil, dos tupamaros, no Uruguai, e dos montoneros, na Argentina.

Nenhum desses movimentos foi tão radical quanto a Facção Exército Vermelho (RAF, na sigla em alemão), mais conhecido como Baader-Meinhof, nomes dos seus dois principais líderes, cuja história serviu como tema do excelente filme de Uli Edel.

Em linguagem seca e sem concessões, Edel, a partir de um livro de Stefan Aust, foi fiel aos fatos e à agitação promovida na Alemanha pelos filhos da geração que construiu o nazismo, desta vez posicionados no outro extremo ideológico da política feita por seus pais.

O ódio como instrumento da política, o cinismo do Estado e os equívocos de uma juventude sectária estão dramáticamente unidos nesta história contada em um filme feito com honestidade e muita competência.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Salada verde

Sentado no restaurante, acompanho a corrida das crianças. As mães parecem cansadas e incapazes de reprimir a alegria infantil que corre por entre as mesas, esbarra nos garçons e grita de forma fina e estridente. Por que nossas crianças são tão mal educadas, pergunto para mim mesmo. E olho para um gordo que come uma salada de folhas verdes.

O gordo está triste, olhando as folhas verdes. Ele as corta, em pedaços pequenos, o alface, o brócoli e o agrião. Joga por cima uma boa quantidade de azeite, leva à boca uma garfada e me dá a impressão de que aumenta a sua tristeza. Dá-me uma certa vontade de consolá-lo dizendo-lhe que “o brócoli é um vegetal muito rico em Cálcio e Ferro, minerais importantes para a formação e manutenção de ossos e dentes e à integridade do sangue”, conforme li em algum lugar. Mas sei que isso não o consolaria.

Solidarizo-me intimamente com o gordo, com a sua tristeza olhando a salada verde e a sua impaciência ouvindo o alarido daquelas crianças de mães cansadas.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Ressurreição


Tolstoi escreveu Ressurreição, seu último romance, na virada do século XIX. O livro não é um dos mais citados desse escritor que, aos 82 anos, rico e famoso, fugiu da família e preferiu morrer como um miserável num vagão de terceira classe. Seu nome é imediatamente associado a Guerra e Paz e Anna Karenina, embora Ressurreição seja um desses livros que, apenas ele, justificaria toda a obra de um escritor.

O dilema de um homem que, na idade madura, procura redimir um erro cometido na juventude serve para Tolstoi exibir sua genialidade como artista mas também para nos provar que a estética não existe separada da ética e que, apesar de tudo, de todos os crimes cometidos e de todas as iniquidades, ainda pode haver grandeza no seres humanos. Um livro adequado ao nosso tempo sem esperanças.

Não resisto e transcrevo um dos primeiros parágrafos de Ressurreição:

«Em vão, centenas de milhares de homens, amontoados num pequeno espaço, se esforçavam por desfigurar a terra em que viviam. Em vão, a cobriam de pedras para que nada pudesse germinar; em vão arrancavam as ervas tenras que pugnavam por irromper; em vão impregnavam o ar de fumaça; em vão escorraçavam os animais e os pássaros - Em vão… Porque até na cidade, a Primavera é Primavera.»

sábado, 10 de outubro de 2009

Kim Novak


Num dia qualquer dos primeiros anos da década dos setenta, almoçando no Nino, que foi um grande restaurante de Copacabana, ví Kim Novak correr para o banheiro engasgada por um forte molho de pimenta malagueta. Ela sentara-se na mesa em frente, na companhia de Jorginho Guinle. Todas as mulheres belas e famosas que passaram pelo Rio, enquanto ele era vivo, sairam em sua companhia. Como ele conseguia?

As mesas eram muito próximas e dava para ouvir tudo o que se dizia na do vizinho. Jorge bem que tentou dissuadí-la de colocar tanta pimenta no prato do picadinho, mas ela insistiu e disse que adorava chili, estava acostumada com a do México, onde costumava passar o verão. Kim parecia gostar de comer e jogou várias colheres cheias de pimenta em cima do picadinho guarnecido com purê de abóbora, arroz, farofa e caldo de feijão.

Eu conhecia bem aquele molho e fiquei na espreita da sua reação. Muito branca, depois da segunda garfada – na primeira nada aconteceu – ela começou a ficar muito vermelha. Em seguida arregalou os olhos, jogou o guardanapo em cima do prato e correu para o banheiro.
Seu acompanhante olhou para nossa mesa e abriu os braços, como quem dizia o que eu poderia fazer?

Ela voltou quase meia hora depois. E pediu um sorvete.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Fina iguaria

Na Idade Média européia, o pão era o alimento do povo. Apenas os nobres comiam carne, fornecida pelo esporte da caça, pois a nobreza dedicava seu tempo aos jogos, à caça e à guerra. Até hoje se utiliza a palavra pão, figurativamente, para definir o alimento de maneira geral, pois era só o que se comia, se não se fosse da família de um senhor feudal.

O homem moderno, no entanto, perdeu a lembrança dos animais de onde vem a carne posta em sua mesa. Vê apenas um bife comprado no supermercado e preparado no fogão a gás.

A tête de veau, que ilustra este post, é uma das receitas mais apreciadas pelo povo francês, mas que costuma assustar o turista quando lhe é apresentada à moda do interior do país: a cabeça da vitela cozida inteira. Já nos restaurantes parisienses, o prato é arrumado na forma da arte dos grandes chefs. Quase ninguém se lembra de que os miolos, a língua e todos os outros ricos pertences vieram da cabeça de um animal sacrificado à gula dos homens.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Sexo no mercado

A porno shop fica entre a igreja e o supermercado, na esquina de Nossa Senhora de Copacabana com Hilário de Gouveia. Sua localização entre estes dois ícones deve simbolizar alguma coisa, algo como a afirmação do sexo, situado entre o alimento da alma e a nutrição do corpo, entre o sublime da mensagem divina e a necessidade de comer para a sobrevivência na terra.

Os clientes disfarçam para entrar nesta catedral da luxúria que é também supermercado da lascívia. Fingem que estão andando pela avenida e de repente pulam para dentro da loja. Os homens são os que mais se escondem, ao contrário das garotas curiosas que entram, aos risos, na procura de sensações proibidas.

O sexo transformou-se numa mercadoria responsável pelo faturamento de bilhões de dólares em todo o mundo, segmentado entre o fetichismo, o voyerismo e a velha, tradicional prostituição. Canais de tv, revistas, lojas, cinema, night-clubs e o show-business são os distribuidores desse produto tão desejado, alvo de histórica repressão e que, quanto mais reprimido, mais valorizado se torna.

domingo, 4 de outubro de 2009

Amor na tarde

Ela chegou apressada e parecia nervosa. O botequim estava cheio mas ela teve sorte de encontrar uma mesa bem no meio do burburinho. O garçon aproximou-se e afastou-se quando ela abanou a cabeça. Não queria nada. Ficou roendo as unhas.

Fazia quase frio, no fim de tarde de Copacabana. A Barata Ribeiro como sempre congestionada e o desfile do povo pela calçada, os que voltavam do trabalho, os que vinham da praia, alguns turistas curiosos tentando ler o cardápio escrito na porta, alguns mais audaciosos procuravam um lugar para sentar-se.

Ela devia ter talvez uns vinte anos, continuava roendo as unhas e olhava para um lado e para o outro, virava-se, estava esperando alguém. Ele chegou enquanto ela olhava para o lado contrário ao que ele veio. Ela tomou um susto e os dois riram, ele sentou-se numa cadeira bem próxima à dela.

Eles se abraçaram demoradamente. Então os dois se beijaram. As pessoas que estavam em volta pouco prestaram a atenção naquele beijo que durou, calculei, bem uns três minutos. Foi bem no fim da tarde, no princípio da noite.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Napoleão imperador

Estou lendo Napoléon, de Pierre Norma, de onde traduzi este trecho que descreve a coroação do imperador:

Napoleão veste as insígnias imperiais e cingiu a cabeça com uma coroa de louros elaborada em ouro. Assim que toma lugar na igreja, diante do altar, numa poltrona simples, a cerimônia começa. Pio VII faz a santa unção na fronte, braços e mãos do Imperador, benze a espada e com ela cinge-lhe a cintura, entrega-lhe o cetro e se aproxima para colocar-lhe a coroa de ouro maciço modelada pela de Carlos Magno. De súbito, Napoleão o afasta, toma a coroa e ele mesmo a coloca sobre a cabeça. Um frêmito de surpresa percorre a multidão. Josefina, por sua vez, desce do trono e se dirige ao altar, onde o Imperador a aguarda, seguida das damas palacianas e de todo o seu serviço de honra; seu manto é carregado pelas princesas Caroline (Madame Murat), Julie (Madame José Bonaparte), Elisa e Louise (Madame Luiz Bonaparte), que a detestam. Seu esposo pousa sobre sua fronte uma coroa encimada por um diadema feito em diamantes. A coroação termina, Napoleão e Josefina sobem ao trono. O papa aproxima-se e abençoa o novo imperador. Um formidável grito de “viva o Imperador!” parte de todas as vozes e faz tremer as abóbodas de Notre-Dame, os músicos tocam; lá fora, os sinos dobram, o canhão troveja.

Segue-se uma festa que vai durar três dias.